EIS O MARGINAL: COMO ALGUÉM SE TORNA O QUE É

Pequeno texto biográfico na Revista Terreiro Contemporâneo.
Agradeço ao jornalista Carlos Maia.





EIS O MARGINAL: COMO ALGUÉM SE TORNA O QUE É

Trapo retorcido no cabide. Sou destino. Dobras, rugas, deformações alfinetadas delicadamente. Tecido amorfo grampeado no chassi-cabide. Contorcido, entre agulhas, parece sentir dor. Ironia trágica. A existência não seria possível sem a sustentação dos objetos perfurantes.

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Circulação de Idéias, Propostas e Resultados
Ano I / Edição Número Dois / Julho 2011/ Rio de Janeiro - Brasil

EIS O MARGINAL: COMO ALGUÉM SE TORNA O QUE É


Mariana Maia, Cabide N.1
Cabides, tecido, alfinetes.
Objeto, 2011.



Eis o marginal: como alguém se torna o que é

Trapo retorcido no cabide. Sou destino.
Dobras, rugas, deformações alfinetadas delicadamente. Tecido amorfo grampeado no chassi-cabide. Contorcido, entre agulhas, parece sentir dor. Ironia trágica. A existência não seria possível sem a sustentação dos objetos perfurantes.
Moldamos um tecido fino com golpes de tesoura e pontas de agulha.
Quem foram meus pais e minhas mães? Onde está minha herança? Diáspora. Tudo é corpo.  Negra, lábios grossos, nariz chato, cabelo duro, bunda grande, cabeça chata, barriga d’água, amarela. Horácio “respira cansado mais um pouco neste mundo tão duro, para a todos contares minha história”[1]. Tudo é sangue.
“De tudo o que se escreve, aprecio somente o que alguém escreve com seu próprio sangue. Escreve com sangue; e aprenderás que o sangue é espírito. Não é fácil compreender o sangue alheio; odeio todos os que lêem por desfastio”[2].
Lodo negro. Marginal do Faria-Timbó. Via da janela do pau a pique: lixo, excrementos, chiqueiro, bosta de galinha, outras taipas, outros rostos de barro como o meu. Cuspida e escarrada de José e Maria. Filha de Ogum. Ele que era duro, o pai, tinha nas veias água ardente. Retirante em marcha das estradas empoeiradas da Paraíba para as obras da Vieira Souto.
Sétima. Marginal de três irmãos e três irmãs escapei de virar lobisomem por ser mulher. Preterida pela mãe diante de tantas crias. Ninguém fez conta dos centímetros que ganhava ao longo dos anos. Alcancei a velha estante cheia de cupins. Aprendi com as traças a devorar imagens ignotas. Minha mãezinha não me ensinou a ser fêmea. Esquecida de mim deixou que virasse um bicho que come papel. Assim começou o ocaso daquela que vem de Maria.
Letrada. Não vesti a máscara da preta, pequena e favelada. Aprendi no sanatório de Thomas Mann e no sorriso insano e dourado do traficante o que é a doença e a morte. Desde então tenho buscado curas. Quelóides na pele açoitada. Encruzilhadas onde encontre outro “eu”. Aquela que não morreu com bala perdida, fome, descaso. Aquela que não deu o primeiro tapinha ou cavalgou o cavalo branco. Aquela que não foi seduzida pelo maço de notas altas. Aquela que encontrou a si mesma no centro do jardim de becos que se bifurcam.
Equilibrista. Nas margens de um abismo. Olhei para a corda estendida, abaixo a crueldade e a violência. Não esmoreci. “É o perigo de transpô-lo, o perigo de estar a caminho, o perigo de olhar para trás, o perigo de tremer e parar”[3]. Não sou vítima. Não sou uma rosa frágil. Sou da estirpe dos guerreiros que empunham o facão e a enxada; das lavadeiras, peniqueiras e trabalhadoras de fábricas. “Um instante de vôo selvagem”[4]. Como Dédalo forjei a minha saída do labirinto na ponta de uma pena.
Artista, marginal, redescobri a performance do feirante, as cores dos muros suburbanos, o parangolé do mendigo, a arquitetura do morro, a paisagem das casas abandonadas. Tudo flui. Entro novamente no rio caudaloso. A mesma água, mas eu sou outra. O tempo é temporal. A chuva ininterrupta não me permite respirar. Não posso ser a pintora divina ou a desenhista etérea. Nas esferas superiores é tudo sério, metódico, profundo, solene. Não sabem dançar. O deus que dança vem da lama podre. O cão de três cabeças ladra furioso. A trama delicada agora são trapos. Nesse circulo tudo é tão difícil, mas há riso.  Na ponta de uma agulha. Sou destino. “Nessa água que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro — o rio.”[5]

Mariana Maia
Mestra em Artes Visuais – UERJ.

Referências Bibliográficas
ALIGHIERI, Dante. “Inferno” In A divina comédia. São Paulo: Ed. 34, 1998.
BORGES, Jorge Luis. “O Jardim de veredas que se bifurcam” In Ficções. São Paulo Companhia das Letras, 2007. pp. 80-93.
JOYCE, James. Um retrato do artista quando jovem. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006.
MANN, Thomas. A montanha mágica. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 2006.
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983.
____________ Ecce Homo: como cheguei a ser o que sou. São Paulo: Martin Claret, 2005.
____________O Nascimento da tragédia ou Grécia e pessimismo. São Paulo: Editora Escala, 2007.
ROSA, Guimarães. “A terceira margem do rio”. In Primeiras Estórias. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1988.
SHAKESPEARE, William. Hamlet. Tradução: Millor Fernandes. Porto Alegre: L&PM Pocket, 1997.

Notas


[1] Shakespeare, William. Hamlet. Tradução: Millor Fernandes. Porto Alegre: L&PM Pocket, 1997. p.135.
[2] Nietzsche, Friedrich. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983. p. 56.
[3] Idem. p. 31.
[4] Joyce, James. Um retrato do artista quando jovem. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006. p. 180.
[5] Rosa, Guimarães. “A terceira margem do rio” In Primeiras Estórias. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1988. p. 32.


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