ENSAIAS: PERFORMANCE, ESCRITA, COSTURA - ANPAP


Mariana Maia – UERJ


Resumo

Ensaias é uma proposta artística e teórica acerca da linguagem da Performance. Ensaias propõe que artista, público e obra entrem em comunhão através do ato performático, propiciado pela figura-conceito saia. Friedrich Nietzsche, em O nascimento da tragédia (1872), fala do coro satírico do ditirambo como o elemento potênciador do êxtase dionisíaco. A decadência dos helênicos estaria atrelada ao abandono das orgias báquicas e a diminuição da importância do coro na tragédia ática, por culpa de um socratismo exacerbado. A presente dissertação propõe realizar uma costura entre a performance e os ritos ao deus Dionísio. Vestir a saia consistiria em trazer à tona o rito trágico. Experimentar a proposta artística Ensaias é permitir que o corpo seja tomado pelo êxtase.

Palavras-chave: Performance. Escrita. Costura. Coro trágico. Êxtase dionisíaco.


Abstract

Ensaias is an artistic and theoretical proposition about the expression of Artistic Performance. Ensaias suggests that artist, audience and artist work itself commune through the performance act, propitiated by the figure that brings the idea of skirt. Friedrich Nietzsche, in The Birth of Tragedy (1872), writes about the dithyramb as the key element on the Dionysian ecstasy. The decadence of the Greek would be linked to the renunciation of bacchante orgies and reduced participation of the Greek choir in the attic tragedies, encouraged by an over evaluated socratism. The present work proposition is to realize a sewing that unites Performance Art with the rites given to Dionisius. Dressing the skirt consists in bringing out the tragic rite, Experiencing the artistic proposition Ensaias Is to allow the body to be overtaken by the ecstasy.

Key words: Performance. Writing. Sewing. Greek Choir. Bacchante Ecstasy.




Mariana Maia. Ensaias Azul, fotografia digital, 2011. Fotografia: Vitor Ramos Braga.

INTRODUÇÃO
Pesquiso ou persigo saias.
“Agora, ao som do fabuloso artífice, ele parecia ouvir o barulho das ondas escuras e ver uma forma alada voando por sobre as ondas e se elevando lentamente no espaço.” [1]
O vôo de Dédalo por sobre o mar rumo ao sol. Do insondável da existência se ergue uma forma alada.
A primeira imagem, indelével.
Saia azul suspensa no terreiro, recordação. Ganhava vida fugaz através de uma brisa. Bailava pelo ar que a sustentava acima do solo. A cada sopro, a saia no varal infla parecendo reviver um corpo que falta. Incorpora sua antiga dona, uma velha negra. O pedaço de tecido ao vento era a presença dela, da avó, morta há pouco tempo. Lembrança diante da qual meus olhos despertaram para um ato de performance.
A saia azul que jazia sem um corpo era animada novamente. Ela estava viva ao vento ou em outros corpos. Mulheres familiares costumavam vestir a saia. A semelhança com a avó fazia com que a presença dela persistisse no corpo dessas outras mulheres. A saia de uso comum era uma espécie de entidade.
As vestes, os objetos, os lugares, todas as coisas são entes (seienden) dotados de um ser (sein), Heidegger (1979). O ser-aí (dassein) pode conferir significado e vida às coisas? A saia azul lentamente se eleva. É a lembrança impalpável. Vida renovada na dança das mulheres de saias. Performance dos corpos coletivos entorno do ente.  O significado de performance pode estar atrelado à ação do corpo coletivo ou à de um ente.
Mulheres usando saias. Herança. Um gesto repetido por gerações. Em saias sente-se o ar por entre as coxas. Nada impede o movimento. “Maria sunga a saia, chuva évem pra te molhá.” [2] Maria empreende a dança libertária. Ela sobe as saias até as coxas e sobe o morro em meio à torrente. A água corre por entre as pernas, a vida se realiza.
Saias com pesada armações, sufocantes. Arrastadas pelas estradas secas e empoeiradas. Apertadas entre panos. Desconforto sem fim. Saia justa. O que pode uma mulher em saias?
Inúmeros homens usaram saias. Não pensaram nelas como símbolos do feminino, mas sim como símbolos de clãs, força viril, guerra. “Eu tenho pena, eu tenho dó, de ver Maria de saia sem paletó. A Maria foi ao jongo de saia de mirinó, seu cordão arrebentou sua saia foi ao pó.” [3] Saias não são símbolos do feminino. Saias são vestes que na cultura ocidental foram associadas à mulher, mas possuem inúmeros correspondentes no vestiário masculino, assim como as peças “tipicamente” masculinas possuem correspondentes nos armários femininos. Em nossa atual forma de vestir há um verdadeiro troca-troca de personagens entre os gêneros. Preferem as mulheres do século XX trocar suas saias e vestidos por calças e ombreiras.
“Agora, estou sentada, olhando a saia rodada, a saia amarfanhosa, almarrotada. E parece que me sento sobre a minha própria vida.” [4]
Outrora havia um corpo carnal. Alguém familiar. Aquela que tomava o ponteiro. No barracão de vigas podres, que parecia querer desabar. As ruínas de um palco esquecido. Nas paredes, saias, de cores várias. Belas, misteriosas, sensuais. Ela costurava e pensava no tempo como um fio dançante. Infinitamente deslizando pelas mãos calosas que empunhavam a agulha. Hábeis e trêmulas se movimentavam sobre a trama, produzindo rasgos ou juntando retalhos. Compondo vestes.
Repito um gesto.
Saias pendem das paredes e teto do atelier. Ensaios de uma proposta performativa. A persistência do corpo nos objetos. A presença se faz presente através das saias que outrora foram e que agora são. Ensaias: proposta textual e artística, atos, realizados pela artista, pelo público, ou ambos, em torno de objetos, saias, ou de algo que remeta à figura-conceito saia.

ATO
Ensaias propõe que se realizem atos: escrever, ler, coser, alfinetar, rasgar, cortar, vestir, molhar, queimar as saias. Artista e público, nesses atos, fazem e refazem as saias propostas; no entanto, as saias nunca são finalizadas. Trata-se, portanto, de objetos inacabados. A performance almeja completar o gesto artístico por meio dos atos compactuados, em torno das saias, entre artista, obra, público. Ensaias propõe performance como à realização de atos, ou seja, performance como atuação.
Renato Cohen, em Performance como linguagem (2007), pensa performance segundo o sentido de atuação. Cohen (2007) compara o teatro ilusionista, aquele que se propõe a criar uma ilusão do real, com a performance. No teatro ilusionista haveria ênfase na representação. Os elementos cênicos se reportariam a uma “outra coisa” - eles representam, almejam o ficcional e o ilusório. Na performance, por sua vez, haveria ênfase no sentido de atuação, o que abre a possibilidade do improviso, do espontâneo. Atuação significando andar por um limite tênue entre vida e arte. Cohen (2007) expõe: “à medida que se quebra com a representação, com a ficção, abre-se espaço para o imprevisto, e, portanto, para o vivo, pois a vida é sinônimo de imprevisto, de risco” [5].
Teatro ilusionista e performance, segundo Cohen (2007), são caracterizados pelo aqui-agora, estar diante de um público no momento da ação. No entanto, a performance será aquela que correrá o risco de estar à mercê do momento presente. Pois o público, na performance, será atuante. Os atos serão compactuados. Atos ritualísticos que evocam o sentido de performance.  Diz Cohen em Performance como linguagem (2007):
Na performance há uma acentuação muito maior do instante presente, do momento da ação (o que acontece no tempo “real”). Isso cria a característica de rito, com o público não sendo mais só espectador, e sim, estando em uma espécie de comunhão [...] A relação entre o espectador e o objeto artístico se desloca então de uma relação precipuamente estética para uma relação mítica, ritualística, onde há um menor distanciamento psicológico entre o objeto e o espectador [...] [6]
Cohen (2007) afirma que na performance há uma acentuação do momento da ação e que isto seria uma característica do rito. O público deixa de ser espectador e passa a ser participante, pois estabelece uma relação mítica ritualística com a obra. Pode-se dizer que o ato performático se concretiza na participação atuante do público. No entanto, propõe-se aqui pensar que não há um abandono do ensaio ou do caráter ficcional e ilusório. Portanto, a performance não se afasta de todo do teatro. Ela se aproxima do teatro com a prática da performance. A proximidade com o rito, proposta por Cohen (2007), mostra que a performance tem relação com o ensaiado. Ritos, segundo Aurélio[7] (1999), são regras e cerimônias próprias de uma prática sagrada. Pode-se dizer, assim, que ritos são gestos, palavras, atos, realizados de forma repetitiva, compondo uma cerimônia, atualizando um mito. O rito é um ensaio sempre, em sua ligação com o significado de performance. Ensaio de algo que nunca se dará de fato. O rito, uma ilusão de verdade – o véu de algo que nunca se dará a ver. O rito se aproxima do significado de ensaiar, experimentar, pôr em prática, mas nunca concluir-se.
Ensaias constitui-se de ritos que problematizam gesto e finitude; Ensaias entende performance como ações: repetição de atos procurando olhar à realidade, os fenômenos, a “origem” da arte. A artista escreve os preceitos de um rito, que será mitificado a partir da participação do público; em sacrifício, vemos a obra de arte que morre em sua materialidade evidente, mas que se perpetua no momento findo do ato, daquele ato. A performance, em certa medida, parece fazer renascer o trágico. Ensaias se dá como um gesto a problematizar a finitude da obra de arte. Diz Joseph Kosuth em A arte depois da filosofia (2006):
[...] a validade das proposições artísticas não é dependente de qualquer pressuposição empírica, muito menos de qualquer pressuposição estética acerca da natureza das coisas. Pois o artista, como um analista, não se preocupa diretamente com a propriedade física das coisas. Ele se preocupa apenas com o modo [...] as proposições de arte não são factuais, mas linguísticas, em seu caráter – isto é, elas não descrevem o comportamento de objetos físicos nem mesmo mentais; elas expressam definições de arte, ou então as conseqüências formais das definições de arte [...] [8]
Kosuth (2006) pensa o que ficaria conhecido como Arte Conceitual, apresentando diversas considerações acerca do caráter não empírico e objectual da arte. O artista, para Kosuth (2006), é alguém que realiza proposições de caráter linguístico, expressando definições da arte ou as consequências formais das definições de arte. O fazer da arte associa-se a uma tomada metalinguística. Arte se ocupando de falar, sobretudo, de arte. Logo, a fatura dos objetos não seria o mais necessário, mas sim o poder de a arte estar em ato. Fazer arte significaria propor atos que tratem do que pode ser, arte. Ensaias se estabelece nesse contexto. As ações propostas pela performer questionam o significado do que é uma performance. Os objetos que são dispostos para o público são feitos para serem modificadas e/ou destruídas pelas ações. As saias pretendem significar mediante a ação de colocá-las em ato: a artista põe-se como um propositor de ritos em torno da obra de arte. Na contemporaneidade o objeto de arte (se é que se pode falar de objeto e mesmo de arte) parece se desmaterializar. O discurso ganha ênfase. “A obra não é mais um nome/objeto, mas um verbo/processo”.[9] A arte contemporânea se dirige para o verbo, para a linguagem: a arte como um problema de linguagem.
A pesquisa propõe realizar uma costura entre as experiências artísticas denominadas Ensaias e o que aqui se concebe como performance, tudo como se houvesse uma fenda, uma cicatriz que necessitasse ser cosida pela ação daquela que disserta - Ensaias se faz presente com objetos, ações, palavras, folhas de papel.

RITO
O Projeto desenvolvido para o Mestrado em Artes da UERJ, em 2009, propunha abordar performance através do que Friedrich Nietzsche (2007) descreve como o coro trágico do ditirambo. “Princípio gerador da tragédia e do trágico em geral” [10], o coro levaria seus integrantes, assim como o público, ao êxtase dionisíaco. Atores e público se desfazem de sua individualidade e se tornam todo, Ur-Eine (Um primordial); do caos primeiro anterior ao princípio de individuação. Diz Nietzsche em O nascimento da tragédia (2007):
Agora, por meio do evangelho da harmonia universal, cada um se sente, com seu próximo, não somente unido, reconciliado, fundido, mas também idêntico a ele, como se o véu de Maya se tivesse rasgado e como se flutuasse de um lado para outro diante do misterioso Um primordial. Cantando e dançando, o homem se manifesta como membro de uma comunidade superior: ele desaprendeu a caminhar e falar e está a ponto de, dançando, voar pelos ares [...] [11]
No coro satírico do ditirambo, o homem grego da Antiguidade encontrou o caos primeiro, o momento anterior à individuação. Em êxtase, o homem grego rasgou o véu de Maya, o véu de ilusão que recobre todas as “verdades”. Na entrega ao coro trágico, os gregos da Antiguidade encontraram “a verdade” e com isso suas almas se consolaram. O êxtase proporcionado pelo coro faz esquecer as agruras da existência. O coro une atores, público, divindade, na busca de uma “verdade”, ou ainda, das muitas “verdades” possíveis através da arte. Não somos mais um à mercê de forças titânicas. O coro faz com que nos tornemos todo, em vozes caóticas e múltiplas. Expõe Roland Barthes (1990), em O teatro grego:
Para se ter uma imagem verídica da choréia, será, talvez, necessário pensar no sentido da educação grega (pelo menos, tal como a definiu Hegel): através de uma representação completa de sua corporalidade (canto e dança), o ateniense manifesta sua liberdade: a liberdade de transformar seu corpo em órgão do espírito.[12]
O coro do teatro grego era composto de canto e dança. Amadores, dentre os cidadãos, eram recrutados. Durante a encenação, o participante realizava exercício de liberdade do corpo. No entanto, em um dado momento, “Téspis ou Frínico deram o primeiro passo e inventaram o primeiro ator, transformando a narrativa em imitação: nascera a ilusão teatral” [13]. Quando um dos elementos do coro se destaca dos demais criando um protagonista, o coro inicia a perder a sua força e pouco a pouco vai se tornando um elemento acessório na trama. Até ser completamente destituído de sua função trágica.
O surgimento do ator inicia o fim do coro trágico e o início de uma tendência à interpretação do texto teatral por atores. Proponho que se pense no coro, na sua ligação com a performance, antes do princípio criador do teatro, antes que o primeiro ator surgisse, o coro do ditirambo, quando o ato cênico era também ato ritualístico a Dionísio. Esta é a ligação do coro da Antiguidade com a performance. O coro possibilitava o acesso ao êxtase dionisíaco. O ato artístico (“como um deus que salva e cura” [14]), levando ao encontro da “verdade”, tornando a vida possível. Diz Nietzsche, em O nascimento da tragédia (2007):
Com esse coro se consola a alma profunda do grego, tão incomparavelmente capaz de sentir o mais leve e o mais cruel sofrimento; ele tinha contemplado com olhos penetrantes os terríveis cataclismas daquilo que se denomina história universal e tinha reconhecido a crueldade da natureza; e então se encontra exposto ao perigo (...) A arte o salva e, pela arte – a vida é reconquistada.[15]
O coro mostra o trágico da existência, mas também dá a “verdade” consoladora. A tragédia fala de como a vida é finda. Na finitude do ato trágico se encontra um bálsamo. O coro satírico encena repetidamente em rito, como em um ensaio. Repetidamente seremos tomados pelo êxtase e gritaremos – Evoé! Bacantes, destroçaremos homens. Escorrendo por entre nossos dedos estará a vida de todos os filhos. No entanto, diante de nossos olhos se entre põe um véu de embriaguez. A vida deixa de ser um pesar. Festejamos: estamos extasiados pela existência. Saímos em cortejo, em coro. Realizamos o ritual orgiástico. E a vida é reconquistada pela arte. Ensaiamos a vida através do coro satírico e vestimos a máscara de sátiros e mênades. Nietzsche (2007):
Aqui, neste supremo perigo da vontade, aproxima-se, como uma feiticeira salvadora, com seus bálsamos, a arte; só ela é capaz de converter aqueles pensamentos de nojo sobre o susto e o absurdo da existência em representações com as quais se pode viver: o sublime como domesticação artística do susto e o cômico como alívio artístico do nojo diante do absurdo[...][16]
A arte proporciona um feitiço salvador, mostra a finitude da vida, evoca viver a intensidade de cada segundo em êxtase. Somos coro, não mais um indivíduo, mas um todo que berra o sentido da vida. Na performance, de forma semelhante ao coro do ditirambo, perdemos individualidade. O performer não interpreta um papel. Ele realiza um rito e compartilha com o público. O performer não se coloca como um artista diante de um público, ele se transforma em visualidade, ele é a própria obra de arte. Nietzsche (2007):
O homem não é mais artista, tornou-se obra de arte: a potência estética da natureza inteira, para a máxima satisfação do Um primordial, se revela aqui sob o estremecimento da embriaguez. A argila mais nobre, o mármore mais precioso, o homem aqui é moldado e trabalhado...[17]
O artista se metamorfoseia em sua própria obra, que também é a potência da vida, o trágico, a finitude.

Marina Abramovic, Ritmo 0, performance, 1974.
Marina Abramovic, em 1974, apresentou a obra Ritmo 0, que consistia em ficar parada diante de uma mesa, na qual estavam dispostos alguns objetos: arma carregada, machado, mel, tinta, perfume, batom, azeite etc, um cartaz que orientava: “há 72 objetos sobre a mesa que podem ser usados em mim conforme desejado. Eu sou o objeto.” Suas roupas foram rasgadas, uma arma foi apontada para a sua cabeça. A performer é obra. Está em risco, à disposição de um coro satírico, o público que, ao fluir, também devora a obra.
Performance: realização de um rito. Ato trágico da precariedade da existência.

PERFORMANCE
ENSAIAS N.2
O que é Performance? Esta pergunta é necessária quando olhamos para a proposta artística Ensaias. A ação do corpo é exigida daqueles que pretendem fluir Ensaias. Só através de uma atitude performativa do leitor Ensaias se torna um objeto artístico, um ente vivo, desvelador da verdade, coro satírico do ditirambo. O ato (a ação, a performance) é o dispositivo que nos permite perceber as saias como objetos e frutos de um engenho, de uma ideia, arte. Entender a linguagem da performance se faz necessário para ouvirmos o que Ensaias tem a dizer.

Mariana Maia. Ensaias N.4 – Saia Rasgar, performance, 2010. Fotografia: Vitor Ramos Braga.

Artur Barrio, 6 movimentos, 1974.
ENSAIAS N.4
6 Movimentos, de 1974, trabalho de Artur Barrio apresenta um tecido, uma tesoura e a mão do artista que se oferece ao olho fotográfico. O ato consiste em seis fotos da tesoura que recorta o tecido. O gesto de cortar não expõe a tela como em Lucio Fontana. Barrio expõe a tesoura que corta.  O gesto comum de corta. A tesoura parece estabelecer uma narrativa e nos 6 quadros conseguimos ler um texto. Escuto a cada quadro o barulho dos golpes da lâmina sobre o tecido. Em loop meu olhar repete o gesto de produzir a fissura. O som das lâminas que se chocam uma na outra não cessa.
Ensaias N.4 é uma saia feita de rasgos. O resultado final é uma saia inutilizável, pois o resultante são apenas farrapos. A saia só tem uma existência possível no fazer. Quando a tesoura cessa finda a ação. Ensaias N.4 evidência a o movimento dos corpos: saia, performer, tesoura. A ação de produzir rasgos confere vida à saia. Ao fim da narrativa temos apenas trapos.
Retalhamos. Ensaias se torna presente no entreato. A obra não quer ser discurso, mas sim aquilo que escapa. Muda, absorta a obra de arte se coloca diante do leitor. Um pano vermelho, uma tesoura. A costura é realizada através do rasgo.  Ameaçadora a lâmina parece se dirigir ao corpo da artista. Retalhos de tecido são extirpados. A obra se vocifera como um cão raivoso que brada com o próprio rabo. A obra almeja o fim, pois ela só é possível no aqui e agora.
O pano vermelho em farrapos recobre o corpo. O palco está fechado. A velha cortina de um palco esquecido. A imagem parece remontar certas imagens do barroco; cheia de fúria, violência, santidade. A tesoura e o tecido são oferecidos ao “outro”, para que a ação do fazer artístico seja recomeçada. O gesto de violência que não cessa. O sexo ameaçado pela lâmina.


Mariana Maia. Ensaias N.5 – Já temos assento, fotografia digital, 2010. Fotografia: Mariana Maia.

Francisco Goya, Ya tienem asiento, 1799.
ENSAIAS N.5
O assento está sobre a cabeça, tal qual um chapéu bizarro. As pernas do banco parecem chifres que se prolongam da estranha cabeça ensaiada. A figura que encara o espectador com seriedade poderia ter vindo de outra época, talvez da Antiguidade. É apenas alguém que sustenta um banco sobre a cabeça por sobre uma saia florida.
Em 1799, Francisco Goya publica junto a sua série Los Caprichos a gravura número 26 Ya tienem asiento. A série Los Caprichos traz um Goya atormentado pela sociedade que o cercava. As gravuras tem uma série de explicações ligadas a um caráter moralizante. A gravura em questão apresenta a seguinte nota em manuscrito que se encontra no Museu do Prado e na Biblioteca Nacional da Espanha: “Para que las niñas casquivanas tengan asiento no hay mejor cosa que ponérselo en la cabeza”[18].
Ensaias N.5 propõe que todos coloquem sobre suas cabeças assentos e dancem buscando equilibrá-los. Quando cabeças podem estar assentadas? Assentar a cabeça, ensaiar um corpo, em Ensaias a situação burlesca proposta por Goya busca outros significados.
O banco que se prolonga da cabeça se mostra como o assento ou a cátedra que essa outra saia almeja. Ensaias quer se assentar como um lugar para o saber. A expressão da performer expõe a perversidade da ação. Vestir a saia sobre a cabeça e nela depositar um banco é a ação proposta, também, para o público. O saber está na cátedra, está sobre a cabeça em uma saia.

Mariana Maia. Ensaias N.6 – Fitas, performance no evento Caos Específico, 2009. Fotografia: Reginaldo Maia.
ENSAIAS N.6
Fitas entrelaçadas formam a costura dessa saia. Os fios descem pela cintura e arrastam no chão. Vagante colorida pelas ruas da Lapa. As fitas dançam ao vento. A saia de fitas almeja ser cor solta no ar. Arco-Íris. Impalpável. A performer desfaz tira a tira, até não haver mais saia. O público recebe as fitas de cetim e levam consigo um pedaço da saia.
Na dança das fitas os participantes realizam paços coreografados. As fitas são trançadas e depois destrançadas. Cores pendem em linhas de um grande mastro central. É como se os corpos fossem as fitas coloridas, no ar, ao vento, brincantes.
Ensaias N.6 foi apresentada no Espaço Clarabóia, na Lapa, Rio de Janeiro. A performer usava uma saia feita de fitas de cetim, que era desfeita na ação. Algumas fitas eram dadas aos participantes, outras jogadas ao chão. A performer parecia puxar com grande esforço cada fita da saia, quase como se as fitas fizessem parte de seu corpo. As tiras de tecido eram lançadas ao ar. Os braços e pernas da performer acompanham a trajetória que as fitas faziam até o chão. Em um lance final, a performer sobe até o segundo andar e lança, pela janela, o restante das fitas. Ao chegarem ao chão são disputadas pelo público.
Pequenos pedaços de tecido colorido são presentes para o público. A saia deixa de ser uma peça única, passa a ser veste de todos. Entrelaçados em cabelos, pendendo dos pescoços. A saia já não pertence à performer, agora é adereço de todo o público. Uma dança das fitas onde o público entrelaça uma nova veste.

Mariana Maia. Ensaias N.7 – Ensaias como danças, performance, 2011. Fotografia: Vitor Ramos Braga.
ENSAIAS N.7
Uma saia feita de véu, ou de vento. O pano é manchado de vermelho em linhas longitudinais que parecem traçar a rota. Uma brincadeira com o movimento do ar. Um brinquedo, ou uma biruta. A borda é redonda e possui um suporte de metal. A barra da saia como um poço, onde nos atiramos sem medo, ansiosos por descobrir o seu interior.
Enchemos a saia de ar e mergulhamos. Realizamos dança, um embate. Quem comanda os movimentos? A saia ou a performer. No interior de Ensaias n.7 nosso corpo está sobre posse de um outro e entramos em comunhão com essa existência dubla. Escutamos o barulho do ar em movimento e do pano que tangencia a pele.


NOTAS


[1] Joyce, James. Um retrato do artista quando jovem. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006. p. 180.
[2] Monteiro, Darcy. Maria sunga a saia (ponto de visaria) – CD Player do Jongo da Serrinha.
[3] Monteiro, Darcy. Eu tenho pena (ponto de demanda) – CD Player do Jongo da Serrinha.
[4] Couto, Mia. “A saia almarrotada” In O fio das Missangas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
[5] Cohen, Renato. Performance como linguagem. São Paulo: Perspectiva, 2007.p. 97.
[6] Idem, Ibidem p. 98.
[7] Aurélio, Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio eletrônico: século XXI. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/Lexicon Informática, 1999.
[8] Kosuth, Joseph. “A arte depois da filosofia” in: Ferreira, Gloria e Cotrin, Cecília (orgs.). Escritos de artistas anos 60/70. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 210-234, 2006. p. 220.
[9] Kwon, Miwon. One place after another: site-specific art and locational identity. London and Cambridge, Mass.: Massachusetts Institute of Technology, 2002; viii + 218 pp.
[10] Nietzsche, Friedrich W. O Nascimento da tragédia ou Grécia e pessimismo. São Paulo: Editora Escala, 2007. p. 101 - 102.
[11] Ibidem. p. 31.
[12] Barthes, Roland. O teatro grego in “O óbvio e o obtuso”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p.77.
[13] Idem.
[14] Nietzsche, Friedrich W. O Nascimento da tragédia ou Grécia e pessimismo. São Paulo: Editora Escala, 2007. p. 62.
[15] Ibidem. p.61.
[16] Ibidem. p.62
[17] Ibidem. p.32.
[18] Helman, Edith. Transmundo de Goya, Madrid: Alianza Editorial, 1983.


REFERÊNCIAS
AURÉLIO, Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio eletrônico: século XXI. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/Lexicon Informática, 1999.
BARTHES, Roland. O teatro grego in “O óbvio e o obtuso”. Rio de Janeiro: Nova Fonteira, 1990.
COHEN, Renato. Performance como linguagem. São Paulo: Perspectiva, 2007.
COUTO, Mia. “A saia almarrotada” In O fio das Missangas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
HEIDEGGER, Martin. A origem da obra de arte. Portugal: Edições 70, 2010.
JOYCE, James. Um retrato do artista quando jovem. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006.
KOSUTH, Joseph. “A arte depois da filosofia” in: Ferreira, Gloria e Cotrin, Cecília (orgs.). Escritos de artistas anos 60/70. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 210-234, 2006.
KWON, Miwon. One Place After Another: Site-Specific Art and Locational Identity. London and Cambridge, Mass.: Massachusetts Institute of Technology, 2002; viii + 218 pp.
NIETZSCHE, Friedrich W. O Nascimento da tragédia ou Grécia e pessimismo. São Paulo: Editora Escala, 2007.


Mariana Maia é Artista Visual, Mestra em Artes Visuais/ UERJ, Graduada em História da Arte/ UERJ e Professora de Artes/ SEEDUC-RJ.










Dispoível em: http://www.anpap.org.br/anais/2011/pdf/cpa/mariana_maia_da_silva.pdf

Exposição FACHA Botafogo





















































Fotos da Performance Desfile realizada no dia 2 de setembro na FACHA Botafogo.
Atores, performers, amigos queridíssimos: Antônio Julião, Jaqueline Tavares e Vanessa Soares.
Ajuda e filmagem do meu amado companheiro Vitor Ramos.
Produção e apoio dos amigos Heleno (NAC) e Carlos Maia.

Obrigada e Grandes Beijos.