Mariana Maia, Cabide N.1 Cabides, tecido, alfinetes. Objeto, 2011. |
Eis o
marginal: como alguém se torna o que é
Trapo retorcido no
cabide. Sou destino.
Dobras, rugas,
deformações alfinetadas delicadamente. Tecido amorfo grampeado no chassi-cabide.
Contorcido, entre agulhas, parece sentir dor. Ironia trágica. A existência não
seria possível sem a sustentação dos objetos perfurantes.
Moldamos um tecido fino
com golpes de tesoura e pontas de agulha.
Quem foram meus pais e
minhas mães? Onde está minha herança? Diáspora. Tudo é corpo. Negra, lábios grossos, nariz chato, cabelo
duro, bunda grande, cabeça chata, barriga d’água, amarela. Horácio “respira
cansado mais um pouco neste mundo tão duro, para a todos contares minha
história”[1].
Tudo é sangue.
“De tudo o que se
escreve, aprecio somente o que alguém escreve com seu próprio sangue. Escreve
com sangue; e aprenderás que o sangue é espírito. Não é fácil compreender o
sangue alheio; odeio todos os que lêem por desfastio”[2].
Lodo negro. Marginal do
Faria-Timbó. Via da janela do pau a pique: lixo, excrementos, chiqueiro, bosta
de galinha, outras taipas, outros rostos de barro como o meu. Cuspida e
escarrada de José e Maria. Filha de Ogum. Ele que era duro, o pai, tinha nas
veias água ardente. Retirante em marcha das estradas empoeiradas da Paraíba
para as obras da Vieira Souto.
Sétima. Marginal de três
irmãos e três irmãs escapei de virar lobisomem por ser mulher. Preterida pela
mãe diante de tantas crias. Ninguém fez conta dos centímetros que ganhava ao
longo dos anos. Alcancei a velha estante cheia de cupins. Aprendi com as traças
a devorar imagens ignotas. Minha mãezinha não me ensinou a ser fêmea. Esquecida
de mim deixou que virasse um bicho que come papel. Assim começou o ocaso daquela
que vem de Maria.
Letrada. Não vesti a
máscara da preta, pequena e favelada. Aprendi no sanatório de Thomas Mann e no
sorriso insano e dourado do traficante o que é a doença e a morte. Desde então
tenho buscado curas. Quelóides na pele açoitada. Encruzilhadas onde encontre
outro “eu”. Aquela que não morreu com bala perdida, fome, descaso. Aquela que
não deu o primeiro tapinha ou cavalgou o cavalo branco. Aquela que não foi
seduzida pelo maço de notas altas. Aquela que encontrou a si mesma no centro do
jardim de becos que se bifurcam.
Equilibrista. Nas
margens de um abismo. Olhei para a corda estendida, abaixo a crueldade e a
violência. Não esmoreci. “É o perigo de transpô-lo, o perigo de estar a
caminho, o perigo de olhar para trás, o perigo de tremer e parar”[3].
Não sou vítima. Não sou uma rosa frágil. Sou da estirpe dos guerreiros que
empunham o facão e a enxada; das lavadeiras, peniqueiras e trabalhadoras de
fábricas. “Um instante de vôo selvagem”[4].
Como Dédalo forjei a minha saída do labirinto na ponta de uma pena.
Artista, marginal,
redescobri a performance do feirante, as cores dos muros suburbanos, o
parangolé do mendigo, a arquitetura do morro, a paisagem das casas abandonadas.
Tudo flui. Entro novamente no rio caudaloso. A mesma água, mas eu sou outra. O
tempo é temporal. A chuva ininterrupta não me permite respirar. Não posso ser a
pintora divina ou a desenhista etérea. Nas esferas superiores é tudo sério,
metódico, profundo, solene. Não sabem dançar. O deus que dança vem da lama
podre. O cão de três cabeças ladra furioso. A trama delicada agora são trapos.
Nesse circulo tudo é tão difícil, mas há riso.
Na ponta de uma agulha. Sou destino. “Nessa água que não pára, de longas
beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro — o rio.”[5]
Mariana
Maia
Mestra em Artes Visuais – UERJ.
Referências
Bibliográficas
ALIGHIERI, Dante. “Inferno” In A divina comédia. São Paulo: Ed. 34, 1998.
BORGES, Jorge Luis. “O Jardim de veredas que se bifurcam”
In Ficções. São Paulo Companhia das
Letras, 2007. pp. 80-93.
JOYCE, James. Um
retrato do artista quando jovem. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006.
MANN, Thomas. A
montanha mágica. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 2006.
NIETZSCHE, Friedrich. Assim
falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1983.
____________ Ecce
Homo: como cheguei a ser o que sou. São Paulo: Martin Claret, 2005.
____________O Nascimento da tragédia ou Grécia e pessimismo. São Paulo:
Editora Escala, 2007.
ROSA, Guimarães.
“A terceira margem do rio”. In Primeiras
Estórias. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1988.
SHAKESPEARE, William. Hamlet. Tradução: Millor Fernandes. Porto Alegre: L&PM
Pocket, 1997.
Notas
[1] Shakespeare,
William. Hamlet. Tradução: Millor
Fernandes. Porto Alegre: L&PM Pocket,
1997. p.135.
[2] Nietzsche, Friedrich. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1983. p. 56.
[3] Idem. p. 31.
[4] Joyce, James. Um
retrato do artista quando jovem. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006. p. 180.
[5] Rosa, Guimarães. “A terceira margem do rio” In Primeiras Estórias. Rio de Janeiro:
Editora Nova Fronteira, 1988. p. 32.
Disponível no Blog abaixo:
Revista Terreiro Contemporâneo
http://revistaterreirocontemporaneo.blogspot.com/
http://revistaterreirocontemporaneo.blogspot.com/2011/08/eis-o-marginal-como-alguem-se-torna-o.html
Circulação de Idéias, Propostas e Resultados
Ano I / Edição Número Dois / Julho 2011/ Rio de Janeiro - Brasil
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