Mariana Maia – UERJ
Resumo
Ensaias é uma proposta
artística e teórica acerca da linguagem da Performance. Ensaias propõe que artista, público e obra entrem em comunhão
através do ato performático, propiciado pela figura-conceito saia. Friedrich
Nietzsche, em O nascimento da tragédia
(1872), fala do coro satírico do ditirambo como o elemento potênciador do
êxtase dionisíaco. A decadência dos helênicos estaria atrelada ao abandono das
orgias báquicas e a diminuição da importância do coro na tragédia ática, por
culpa de um socratismo exacerbado. A presente dissertação propõe realizar uma
costura entre a performance e os ritos ao deus Dionísio.
Vestir a saia consistiria em trazer à tona o rito trágico. Experimentar a proposta
artística Ensaias é permitir que o
corpo seja tomado pelo êxtase.
Palavras-chave: Performance.
Escrita. Costura. Coro
trágico. Êxtase dionisíaco.
Abstract
Ensaias is an artistic and theoretical proposition
about the expression of Artistic Performance. Ensaias suggests that artist,
audience and artist work itself commune through the performance act,
propitiated by the figure that brings the idea of skirt. Friedrich Nietzsche,
in The Birth of Tragedy (1872), writes about the dithyramb as the key element
on the Dionysian ecstasy. The decadence of the Greek would be linked to the
renunciation of bacchante orgies and reduced participation of the Greek choir
in the attic tragedies, encouraged by an over evaluated socratism. The present
work proposition is to realize a sewing that unites Performance Art with the
rites given to Dionisius. Dressing the skirt consists in bringing out the
tragic rite, Experiencing the artistic proposition Ensaias Is to allow the body to be overtaken by the ecstasy.
Key words: Performance. Writing. Sewing. Greek Choir.
Bacchante Ecstasy.
Mariana Maia. Ensaias Azul, fotografia digital, 2011.
Fotografia: Vitor Ramos Braga.
INTRODUÇÃO
Pesquiso ou persigo saias.
“Agora, ao som do fabuloso
artífice, ele parecia ouvir o barulho das ondas escuras e ver uma forma alada
voando por sobre as ondas e se elevando lentamente no espaço.” [1]
O vôo de Dédalo por sobre
o mar rumo ao sol. Do insondável da existência se ergue uma forma alada.
A primeira imagem,
indelével.
Saia azul suspensa no
terreiro, recordação. Ganhava vida fugaz através de uma brisa. Bailava pelo ar
que a sustentava acima do solo. A cada sopro, a saia no varal infla parecendo
reviver um corpo que falta. Incorpora sua antiga dona, uma velha negra. O
pedaço de tecido ao vento era a presença dela, da avó, morta há pouco tempo.
Lembrança diante da qual meus olhos despertaram para um ato de performance.
A saia azul que jazia sem
um corpo era animada novamente. Ela estava viva ao vento ou em outros corpos.
Mulheres familiares costumavam vestir a saia. A semelhança com a avó fazia com
que a presença dela persistisse no corpo dessas outras mulheres. A saia de uso
comum era uma espécie de entidade.
As vestes, os objetos, os
lugares, todas as coisas são entes (seienden) dotados de um ser (sein), Heidegger (1979). O ser-aí
(dassein) pode conferir significado e vida às coisas? A saia azul lentamente se
eleva. É a lembrança impalpável. Vida renovada na dança das mulheres de saias.
Performance dos corpos coletivos entorno do ente. O significado de performance pode estar
atrelado à ação do corpo coletivo ou à de um ente.
Mulheres usando
saias. Herança. Um gesto repetido por gerações. Em saias sente-se o ar por
entre as coxas. Nada impede o movimento. “Maria sunga a saia, chuva évem pra te
molhá.” [2]
Maria empreende a dança libertária. Ela sobe as saias até as coxas e sobe o
morro em meio à torrente. A água corre por entre as pernas, a vida se realiza.
Saias com pesada
armações, sufocantes. Arrastadas pelas estradas secas e empoeiradas. Apertadas
entre panos. Desconforto sem fim. Saia justa. O que pode uma mulher em saias?
Inúmeros homens
usaram saias. Não pensaram nelas como símbolos do feminino, mas sim como
símbolos de clãs, força viril, guerra. “Eu tenho pena, eu tenho dó, de ver
Maria de saia sem paletó. A Maria foi ao jongo de saia de mirinó, seu cordão
arrebentou sua saia foi ao pó.” [3]
Saias não são símbolos do feminino. Saias são vestes que na cultura ocidental
foram associadas à mulher, mas possuem inúmeros correspondentes no vestiário
masculino, assim como as peças “tipicamente” masculinas possuem correspondentes
nos armários femininos. Em nossa atual forma de vestir há um verdadeiro
troca-troca de personagens entre os gêneros. Preferem as mulheres do século XX
trocar suas saias e vestidos por calças e ombreiras.
“Agora, estou sentada,
olhando a saia rodada, a saia amarfanhosa, almarrotada. E parece que me sento
sobre a minha própria vida.” [4]
Outrora havia um corpo
carnal. Alguém familiar. Aquela que tomava o ponteiro. No barracão de vigas
podres, que parecia querer desabar. As ruínas de um palco esquecido. Nas
paredes, saias, de cores várias. Belas, misteriosas, sensuais. Ela costurava e
pensava no tempo como um fio dançante. Infinitamente deslizando pelas mãos
calosas que empunhavam a agulha. Hábeis e trêmulas se movimentavam sobre a
trama, produzindo rasgos ou juntando retalhos. Compondo vestes.
Repito um gesto.
Saias pendem das paredes e
teto do atelier. Ensaios de uma proposta performativa. A persistência do corpo
nos objetos. A presença se faz presente através das saias que outrora foram e
que agora são. Ensaias: proposta
textual e artística, atos, realizados pela artista, pelo público, ou ambos, em
torno de objetos, saias, ou de algo que remeta à figura-conceito saia.
ATO
Ensaias propõe que se
realizem atos: escrever, ler, coser, alfinetar, rasgar, cortar, vestir, molhar,
queimar as saias. Artista e público, nesses atos, fazem e refazem as saias
propostas; no entanto, as saias nunca são finalizadas. Trata-se, portanto, de objetos
inacabados. A performance almeja completar o gesto artístico por meio dos atos
compactuados, em torno das saias, entre artista, obra, público. Ensaias propõe performance como à
realização de atos, ou seja, performance como atuação.
Renato Cohen, em Performance como linguagem (2007), pensa
performance segundo o sentido de atuação. Cohen (2007) compara o teatro
ilusionista, aquele que se propõe a criar uma ilusão do real, com a
performance. No teatro ilusionista haveria ênfase na representação. Os elementos
cênicos se reportariam a uma “outra coisa” - eles representam, almejam o
ficcional e o ilusório. Na performance, por sua vez, haveria ênfase no sentido
de atuação, o que abre a possibilidade do improviso, do espontâneo. Atuação
significando andar por um limite tênue entre vida e arte. Cohen (2007) expõe:
“à medida que se quebra com a representação, com a ficção, abre-se espaço para
o imprevisto, e, portanto, para o vivo, pois a vida é sinônimo de imprevisto,
de risco” [5].
Teatro ilusionista e
performance, segundo Cohen (2007), são caracterizados pelo aqui-agora, estar
diante de um público no momento da ação. No entanto, a performance será aquela
que correrá o risco de estar à mercê do momento presente. Pois o público, na
performance, será atuante. Os atos serão compactuados. Atos ritualísticos que
evocam o sentido de performance. Diz
Cohen em Performance como linguagem (2007):
Na performance
há uma acentuação muito maior do instante presente, do momento da ação (o que
acontece no tempo “real”). Isso cria a característica de rito, com o público não sendo mais só espectador, e sim, estando em
uma espécie de comunhão [...] A relação entre o espectador e o objeto artístico
se desloca então de uma relação precipuamente estética para uma relação mítica,
ritualística, onde há um menor distanciamento psicológico entre o objeto e o
espectador [...] [6]
Cohen (2007) afirma que na
performance há uma acentuação do momento da ação e que isto seria uma
característica do rito. O público deixa de ser espectador e passa a ser
participante, pois estabelece uma relação mítica ritualística com a obra.
Pode-se dizer que o ato performático se concretiza na participação atuante do
público. No entanto, propõe-se aqui pensar que não há um abandono do ensaio ou
do caráter ficcional e ilusório. Portanto, a performance não se afasta de todo
do teatro. Ela se aproxima do teatro com a prática da performance. A
proximidade com o rito, proposta por Cohen (2007), mostra que a performance tem
relação com o ensaiado. Ritos, segundo Aurélio[7] (1999),
são regras e cerimônias próprias de uma prática sagrada. Pode-se dizer, assim,
que ritos são gestos, palavras, atos, realizados de forma repetitiva, compondo
uma cerimônia, atualizando um mito. O rito é um ensaio sempre, em sua ligação
com o significado de performance. Ensaio de algo que nunca se dará de fato. O
rito, uma ilusão de verdade – o véu de algo que nunca se dará a ver. O rito se
aproxima do significado de ensaiar, experimentar, pôr em prática, mas nunca
concluir-se.
Ensaias constitui-se de ritos que
problematizam gesto e finitude; Ensaias entende performance como ações:
repetição de atos procurando olhar à realidade, os fenômenos, a “origem” da
arte. A artista escreve os preceitos de um rito, que será mitificado a partir
da participação do público; em sacrifício, vemos a obra de arte que morre em
sua materialidade evidente, mas que se perpetua no momento findo do ato,
daquele ato. A performance, em certa medida, parece fazer renascer o trágico. Ensaias se dá como um gesto a
problematizar a finitude da obra de arte. Diz Joseph Kosuth em A arte depois da filosofia (2006):
[...] a validade das proposições artísticas não é
dependente de qualquer pressuposição empírica, muito menos de qualquer
pressuposição estética acerca da natureza das coisas. Pois o artista, como um
analista, não se preocupa diretamente com a propriedade física das coisas. Ele
se preocupa apenas com o modo [...] as proposições de arte não são factuais,
mas linguísticas, em seu caráter – isto é, elas não descrevem o comportamento
de objetos físicos nem mesmo mentais; elas expressam definições de arte, ou
então as conseqüências formais das definições de arte [...] [8]
Kosuth (2006) pensa o que
ficaria conhecido como Arte Conceitual, apresentando diversas considerações
acerca do caráter não empírico e objectual da arte. O artista, para Kosuth
(2006), é alguém que realiza proposições de caráter linguístico, expressando
definições da arte ou as consequências formais das definições de arte. O fazer
da arte associa-se a uma tomada metalinguística. Arte se ocupando de falar,
sobretudo, de arte. Logo, a fatura dos objetos não seria o mais necessário, mas
sim o poder de a arte estar em ato. Fazer arte significaria propor atos que
tratem do que pode ser, arte. Ensaias se
estabelece nesse contexto. As ações propostas pela performer questionam o
significado do que é uma performance. Os objetos que são dispostos para o
público são feitos para serem modificadas e/ou destruídas pelas ações. As saias
pretendem significar mediante a ação de colocá-las em ato: a artista põe-se
como um propositor de ritos em torno da obra de arte. Na contemporaneidade o
objeto de arte (se é que se pode falar de objeto e mesmo de arte) parece se
desmaterializar. O discurso ganha ênfase. “A obra não é mais um nome/objeto,
mas um verbo/processo”.[9] A
arte contemporânea se dirige para o verbo, para a linguagem: a arte como um
problema de linguagem.
A pesquisa propõe realizar
uma costura entre as experiências artísticas denominadas Ensaias e o que aqui se concebe como performance, tudo como se
houvesse uma fenda, uma cicatriz que necessitasse ser cosida pela ação daquela
que disserta - Ensaias se faz
presente com objetos, ações, palavras, folhas de papel.
RITO
O Projeto desenvolvido
para o Mestrado em Artes da UERJ, em 2009, propunha abordar performance através
do que Friedrich Nietzsche (2007) descreve como o coro trágico do ditirambo.
“Princípio gerador da tragédia e do trágico em geral” [10],
o coro levaria seus integrantes, assim como o público, ao êxtase dionisíaco.
Atores e público se desfazem de sua individualidade e se tornam todo, Ur-Eine (Um primordial); do caos
primeiro anterior ao princípio de individuação. Diz Nietzsche em O nascimento da tragédia (2007):
Agora, por meio do evangelho da harmonia universal, cada
um se sente, com seu próximo, não somente unido, reconciliado, fundido, mas
também idêntico a ele, como se o véu de Maya
se tivesse rasgado e como se flutuasse de um lado para outro diante do
misterioso Um primordial. Cantando e dançando, o homem se manifesta como membro
de uma comunidade superior: ele desaprendeu a caminhar e falar e está a ponto
de, dançando, voar pelos ares [...] [11]
No
coro satírico do ditirambo, o homem grego da Antiguidade encontrou o caos
primeiro, o momento anterior à individuação. Em êxtase, o homem grego rasgou o
véu de Maya, o véu de ilusão que
recobre todas as “verdades”. Na entrega ao coro trágico, os gregos da
Antiguidade encontraram “a verdade” e com isso suas almas se consolaram. O
êxtase proporcionado pelo coro faz esquecer as agruras da existência. O coro
une atores, público, divindade, na busca de uma “verdade”, ou ainda, das muitas
“verdades” possíveis através da arte. Não somos mais um à mercê de forças
titânicas. O coro faz com que nos tornemos todo, em vozes caóticas e múltiplas.
Expõe Roland Barthes (1990), em O teatro grego:
Para se ter
uma imagem verídica da choréia, será,
talvez, necessário pensar no sentido da educação grega (pelo menos, tal como a
definiu Hegel): através de uma representação completa de sua corporalidade (canto
e dança), o ateniense manifesta sua liberdade: a liberdade de transformar seu
corpo em órgão do espírito.[12]
O coro do teatro grego era composto de canto e
dança. Amadores, dentre os cidadãos, eram recrutados. Durante a encenação, o
participante realizava exercício de liberdade do corpo. No entanto, em um dado
momento, “Téspis ou Frínico deram o primeiro passo e inventaram o primeiro
ator, transformando a narrativa em imitação: nascera a ilusão teatral” [13]. Quando um dos elementos do coro se destaca dos demais criando um
protagonista, o coro inicia a perder a sua força e pouco a pouco vai se
tornando um elemento acessório na trama. Até ser completamente destituído de
sua função trágica.
O surgimento do ator inicia o fim do coro trágico e
o início de uma tendência à interpretação do texto teatral por atores. Proponho
que se pense no coro, na sua ligação com a performance, antes do princípio
criador do teatro, antes que o primeiro ator surgisse, o coro do ditirambo,
quando o ato cênico era também ato ritualístico a Dionísio. Esta é a ligação do
coro da Antiguidade com a performance. O coro possibilitava o acesso ao êxtase dionisíaco. O ato
artístico (“como um deus que salva e cura” [14]),
levando ao encontro da “verdade”, tornando a vida possível. Diz Nietzsche, em O nascimento da tragédia (2007):
Com esse
coro se consola a alma profunda do grego, tão incomparavelmente capaz de sentir
o mais leve e o mais cruel sofrimento; ele tinha contemplado com olhos
penetrantes os terríveis cataclismas daquilo que se denomina história universal
e tinha reconhecido a crueldade da natureza; e então se encontra exposto ao
perigo (...) A arte o salva e, pela arte – a vida é reconquistada.[15]
O coro mostra o trágico da
existência, mas também dá a “verdade” consoladora. A tragédia fala de como a
vida é finda. Na finitude do ato trágico se encontra um bálsamo. O coro
satírico encena repetidamente em rito, como em um ensaio. Repetidamente seremos
tomados pelo êxtase e gritaremos – Evoé! Bacantes, destroçaremos homens.
Escorrendo por entre nossos dedos estará a vida de todos os filhos. No entanto,
diante de nossos olhos se entre põe um véu de embriaguez. A vida deixa de ser
um pesar. Festejamos: estamos extasiados pela existência. Saímos em cortejo, em
coro. Realizamos o ritual orgiástico. E a vida é reconquistada pela arte.
Ensaiamos a vida através do coro satírico e vestimos a máscara de sátiros e
mênades. Nietzsche (2007):
Aqui, neste supremo perigo da vontade, aproxima-se, como
uma feiticeira salvadora, com seus bálsamos, a arte; só ela é capaz de converter aqueles pensamentos de nojo sobre
o susto e o absurdo da existência em representações com as quais se pode viver:
o sublime como domesticação artística
do susto e o cômico como alívio
artístico do nojo diante do absurdo[...][16]
A arte proporciona um
feitiço salvador, mostra a finitude da vida, evoca viver a intensidade de cada
segundo em êxtase. Somos coro, não mais um indivíduo, mas um todo que berra o
sentido da vida. Na performance, de forma semelhante ao coro do ditirambo,
perdemos individualidade. O performer não interpreta um papel. Ele realiza um
rito e compartilha com o público. O performer não se coloca como um artista
diante de um público, ele se transforma em visualidade, ele é a própria obra de
arte. Nietzsche (2007):
O homem não
é mais artista, tornou-se obra de arte: a potência estética da natureza
inteira, para a máxima satisfação do Um primordial, se revela aqui sob o
estremecimento da embriaguez. A argila mais nobre, o mármore mais precioso, o
homem aqui é moldado e trabalhado...[17]
O artista se metamorfoseia
em sua própria obra, que também é a potência da vida, o trágico, a finitude.
Marina Abramovic, Ritmo
0, performance, 1974.
Marina Abramovic, em 1974,
apresentou a obra Ritmo 0, que consistia em ficar parada diante de uma mesa, na
qual estavam dispostos alguns objetos: arma carregada, machado, mel, tinta,
perfume, batom, azeite etc, um cartaz que orientava: “há 72 objetos sobre a
mesa que podem ser usados em mim conforme desejado. Eu sou o objeto.” Suas
roupas foram rasgadas, uma arma foi apontada para a sua cabeça. A performer é
obra. Está em risco, à disposição de um coro satírico, o público que, ao fluir,
também devora a obra.
Performance: realização de
um rito. Ato trágico da precariedade da existência.
PERFORMANCE
ENSAIAS N.2
O
que é Performance? Esta pergunta é necessária quando olhamos para a proposta
artística Ensaias. A ação do corpo é exigida daqueles que pretendem fluir Ensaias. Só através de uma atitude
performativa do leitor Ensaias se
torna um objeto artístico, um ente vivo, desvelador da verdade, coro satírico
do ditirambo. O ato (a ação, a performance) é o dispositivo que nos permite
perceber as saias como objetos e frutos de um engenho, de uma ideia, arte.
Entender a linguagem da performance se faz necessário para ouvirmos o que Ensaias tem a dizer.
Mariana Maia. Ensaias N.4 –
Saia Rasgar, performance,
2010. Fotografia: Vitor Ramos Braga.
Artur Barrio, 6 movimentos, 1974.
ENSAIAS
N.4
6 Movimentos, de 1974,
trabalho de Artur Barrio apresenta um tecido, uma tesoura e a mão do artista
que se oferece ao olho fotográfico. O ato consiste em seis fotos da tesoura que
recorta o tecido. O gesto de cortar não expõe a tela como em Lucio Fontana.
Barrio expõe a tesoura que corta. O
gesto comum de corta. A tesoura parece estabelecer uma narrativa e nos 6
quadros conseguimos ler um texto. Escuto a cada quadro o barulho dos golpes da
lâmina sobre o tecido. Em loop meu
olhar repete o gesto de produzir a fissura. O som das lâminas que se chocam uma
na outra não cessa.
Ensaias
N.4 é uma saia feita
de rasgos. O resultado final é uma saia inutilizável, pois o resultante são
apenas farrapos. A saia só tem uma existência possível no fazer. Quando a
tesoura cessa finda a ação. Ensaias N.4 evidência
a o movimento dos corpos: saia,
performer, tesoura. A ação de produzir rasgos confere vida à saia. Ao fim da
narrativa temos apenas trapos.
Retalhamos. Ensaias se torna presente no entreato. A
obra não quer ser discurso, mas sim aquilo que escapa. Muda, absorta a obra de
arte se coloca diante do leitor. Um pano vermelho, uma tesoura. A costura é
realizada através do rasgo. Ameaçadora a
lâmina parece se dirigir ao corpo da artista. Retalhos de tecido são
extirpados. A obra se vocifera como um cão raivoso que brada com o próprio rabo.
A obra almeja o fim, pois ela só é possível no aqui e agora.
O pano vermelho em
farrapos recobre o corpo. O palco está fechado. A velha cortina de um palco
esquecido. A imagem parece remontar certas imagens do barroco; cheia de fúria,
violência, santidade. A tesoura e o tecido são oferecidos ao “outro”, para que
a ação do fazer artístico seja recomeçada. O gesto de violência que não cessa.
O sexo ameaçado pela lâmina.
Mariana Maia. Ensaias N.5 – Já temos assento,
fotografia digital, 2010. Fotografia: Mariana Maia.
Francisco Goya, Ya tienem asiento, 1799.
ENSAIAS
N.5
O assento está sobre a
cabeça, tal qual um chapéu bizarro. As pernas do banco parecem chifres que se
prolongam da estranha cabeça ensaiada. A figura que encara o espectador com
seriedade poderia ter vindo de outra época, talvez da Antiguidade. É apenas
alguém que sustenta um banco sobre a cabeça por sobre uma saia florida.
Em 1799, Francisco Goya
publica junto a sua série Los Caprichos
a gravura número 26 Ya tienem asiento.
A série Los Caprichos traz um Goya
atormentado pela sociedade que o cercava. As gravuras tem uma série de
explicações ligadas a um caráter moralizante. A gravura em questão apresenta a
seguinte nota em manuscrito que se encontra no Museu do Prado e na Biblioteca
Nacional da Espanha: “Para que las niñas casquivanas tengan asiento no hay
mejor cosa que ponérselo en la cabeza”[18].
Ensaias
N.5 propõe que todos
coloquem sobre suas cabeças assentos e dancem buscando equilibrá-los. Quando
cabeças podem estar assentadas? Assentar a cabeça, ensaiar um corpo, em Ensaias
a situação burlesca proposta por Goya busca outros significados.
O banco que se prolonga da
cabeça se mostra como o assento ou a cátedra que essa outra saia almeja.
Ensaias quer se assentar como um lugar para o saber. A expressão da performer
expõe a perversidade da ação. Vestir a saia sobre a cabeça e nela depositar um
banco é a ação proposta, também, para o público. O saber está na cátedra, está
sobre a cabeça em uma saia.
Mariana Maia. Ensaias N.6 – Fitas,
performance no evento Caos Específico, 2009. Fotografia: Reginaldo Maia.
ENSAIAS
N.6
Fitas entrelaçadas formam
a costura dessa saia. Os fios descem pela cintura e arrastam no chão. Vagante
colorida pelas ruas da Lapa. As fitas dançam ao vento. A saia de fitas almeja
ser cor solta no ar. Arco-Íris. Impalpável. A performer desfaz tira a tira, até
não haver mais saia. O público recebe as fitas de cetim e levam consigo um
pedaço da saia.
Na dança das fitas os
participantes realizam paços coreografados. As fitas são trançadas e depois
destrançadas. Cores pendem em linhas de um grande mastro central. É como se os
corpos fossem as fitas coloridas, no ar, ao vento, brincantes.
Ensaias
N.6 foi apresentada
no Espaço Clarabóia, na Lapa, Rio de Janeiro. A performer usava uma saia feita
de fitas de cetim, que era desfeita na ação. Algumas fitas eram dadas aos
participantes, outras jogadas ao chão. A performer parecia puxar com grande
esforço cada fita da saia, quase como se as fitas fizessem parte de seu corpo.
As tiras de tecido eram lançadas ao ar. Os braços e pernas da performer
acompanham a trajetória que as fitas faziam até o chão. Em um lance final, a
performer sobe até o segundo andar e lança, pela janela, o restante das fitas.
Ao chegarem ao chão são disputadas pelo público.
Pequenos pedaços de tecido
colorido são presentes para o público. A saia deixa de ser uma peça única,
passa a ser veste de todos. Entrelaçados em cabelos, pendendo dos pescoços. A
saia já não pertence à performer, agora é adereço de todo o público. Uma dança
das fitas onde o público entrelaça uma nova veste.
Mariana Maia. Ensaias N.7 – Ensaias como danças,
performance, 2011. Fotografia: Vitor Ramos Braga.
ENSAIAS
N.7
Uma saia feita de véu, ou
de vento. O pano é manchado de vermelho em linhas longitudinais que parecem
traçar a rota. Uma brincadeira com o movimento do ar. Um brinquedo, ou uma
biruta. A borda é redonda e possui um suporte de metal. A barra da saia como um
poço, onde nos atiramos sem medo, ansiosos por descobrir o seu interior.
Enchemos a saia de ar e
mergulhamos. Realizamos dança, um embate. Quem comanda os movimentos? A saia ou
a performer. No interior de Ensaias n.7
nosso corpo está sobre posse de um outro e entramos em comunhão com essa
existência dubla. Escutamos o barulho do ar em movimento e do pano que
tangencia a pele.
NOTAS
[1] Joyce, James. Um retrato do artista quando jovem. Rio
de Janeiro: Objetiva, 2006. p. 180.
[2] Monteiro, Darcy. Maria sunga a saia (ponto de visaria) –
CD Player do Jongo da Serrinha.
[3] Monteiro, Darcy. Eu tenho pena (ponto de demanda) – CD
Player do Jongo da Serrinha.
[4] Couto, Mia. “A saia
almarrotada” In O fio das Missangas.
São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
[5] Cohen, Renato. Performance como linguagem. São Paulo:
Perspectiva, 2007.p. 97.
[7] Aurélio, Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio eletrônico: século
XXI. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/Lexicon Informática, 1999.
[8] Kosuth, Joseph. “A
arte depois da filosofia” in: Ferreira, Gloria e Cotrin, Cecília (orgs.). Escritos de artistas anos 60/70. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, p. 210-234, 2006. p. 220.
[9] Kwon, Miwon. One place after another: site-specific art and
locational identity. London and Cambridge, Mass.: Massachusetts Institute
of Technology, 2002; viii + 218 pp.
[10] Nietzsche, Friedrich
W. O Nascimento da tragédia ou Grécia e
pessimismo. São Paulo: Editora Escala, 2007. p. 101 - 102.
[11] Ibidem. p. 31.
[12] Barthes, Roland. O teatro grego in “O óbvio e o obtuso”.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p.77.
[13] Idem.
[14] Nietzsche, Friedrich
W. O Nascimento da tragédia ou Grécia e
pessimismo. São Paulo: Editora Escala, 2007. p. 62.
[15] Ibidem. p.61.
[16] Ibidem. p.62
[18] Helman, Edith.
Transmundo de Goya, Madrid: Alianza Editorial, 1983.
REFERÊNCIAS
AURÉLIO, Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio eletrônico:
século XXI. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/Lexicon Informática, 1999.
BARTHES,
Roland. O teatro grego in “O óbvio e
o obtuso”. Rio de Janeiro: Nova Fonteira, 1990.
COHEN,
Renato. Performance como linguagem.
São Paulo: Perspectiva, 2007.
COUTO, Mia. “A saia almarrotada” In O fio das Missangas. São Paulo:
Companhia das Letras, 2009.
HEIDEGGER, Martin. A origem da obra de arte. Portugal: Edições 70, 2010.
JOYCE,
James. Um retrato do artista quando jovem.
Rio de Janeiro: Objetiva, 2006.
KOSUTH,
Joseph. “A arte depois da filosofia” in: Ferreira, Gloria e Cotrin, Cecília
(orgs.). Escritos de artistas anos 60/70.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 210-234, 2006.
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Art and Locational Identity. London and Cambridge, Mass.: Massachusetts
Institute of Technology, 2002; viii + 218 pp.
NIETZSCHE,
Friedrich W. O Nascimento da tragédia ou
Grécia e pessimismo. São Paulo: Editora Escala, 2007.
Mariana
Maia é
Artista Visual, Mestra em Artes Visuais/ UERJ, Graduada em História da Arte/
UERJ e Professora de Artes/ SEEDUC-RJ.
Dispoível em: http://www.anpap.org.br/anais/2011/pdf/cpa/mariana_maia_da_silva.pdf
Dispoível em: http://www.anpap.org.br/anais/2011/pdf/cpa/mariana_maia_da_silva.pdf
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